quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Crônica: Happy Hour Filosófico



- Nem sempre o que pensamos cabe em 240 caracteres, mas talvez o problema não esteja necessariamente no limite de caracteres.
- Nossa, bonita essa frase, daria um bom twitt.
- Quantos caracteres Camões usou nos Lusíadas?
- 1287!
- Hein?
- Você nem leu Os Lusíadas.
- Mas esse não é o ponto, quase ninguem leu.
- Tem um grupo de whatsapp do colégio, em que me colocaram, da hora do almoço até agora 1287 mensagens.
- Eu silencio todos os meus grupos, só vou entrando e lendo o que me interessa.
- Assim você perde o timing da piada, e o timing é tudo, tenho uma teoria sobre isso.
- Provavelmente essa sua teoria não vai caber em 240 caracteres.
- Mas você pode ir condensando essa teoria toda em twitts contínuos.
- Eu tinha um grupo do colégio também, um dia silenciei por uma semana e não sei o que aconteceu, acho que teve um apocalipse, acabaram as mensagens.
- Conectividade, uma boa forma de viver é procurar o check-in perfeito, algo como o Eldorado.
- Tenho uma amiga que enganou um cara dizendo que estava na Europa, postando fotos de uma viagem antiga.
- A Farsa de Inês de Castro “mais vale asno que me carregue do que cavalo que me derrube”.
- Bela citação, cabe num twitt de 240 caracteres.
- Gil Vicente, essa farsa é uma farsa, não confunda bife de caçarolinha com arma de caçar rolinha.
- Caraca, que frase foi essa que saiu?
- A Farsa de Inês Pereira.
- Acho que dá para escrever um cartão de aniversário com 240 caracteres.
- Quem escreve cartões de aniversário hoje em dia?
- Quem fala hoje em dia, hoje em dia?
- Inês de Castro é aquela dos Lusíadas.
- Que você não leu...
- Ler ou não ler, eis a questão que por vezes define o ser, mesmo sendo o ser algo próprio do plano do ser.
- O check-in é algo pertencente ao plano do ser ou do dever ser?
- Tenho uma teoria sobre isso...
- Vou pedir mais uma cerveja então, quantos copos? 4?
- Embora ele seja, já que é uma representação de algo real, o fato de estar relacionado a uma potencialização comunicativa ligada à conectividade, empresta uma natureza mais próxima do dever ser, pois seria uma representação da vida, não propriamente a vida.
- A vida é muito mais do que a representação da vida.
- Original, por favor!
- Fui assistir Mãe ontem no cinema, não vale nem a pena sair de casa...
- Eu gostei, aquela discussão sobre religião, sobre Deus.
- “É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende, que a tanto o engenho humano não se estende.”
- Camões em até 240 caracteres?
- Hoje o céu está tão lindo.
- Cai chuva, hahaha tô brincando, melhor continuar assim mesmo.
- Mãe é um filme polêmico, muitas pessoas não vão gostar.
- Mas a polêmica é uma forma de expressão artística.
- No livro Ética a Nicômaco, Aristóteles busca um significado de felicidade que se confunde com o ato de contemplar, que seria uma forma de prazer que se confunde com a vida, a criação.
- “Céu de cinema, estrada, de algum lugar qualquer, nem lá nem cá o Sol...”
- Contemplar será um verbo intransitivo?
- Viver, aparentemente é.
- É por isso que eu digo, quantas vezes se vive?
- Eu tô gostando dessa conversa toda porque as frases cheias de sentido, colocadas juntas não estão encontrando todo esse sentido.
- Deve ser a falta de cerveja.
- Conectividade, já falei sobre isso hoje?
- Tenho uma teoria sobre isso.
- Quem quer pedir uma porção?
- De teorias, conectividade, palavras na mesa?
- Talvez os pastéis mistos sejam uma boa opção.
- E a saideira, se só se vive uma vez, se vive sempre com uma saideira.
- É uma boa frase para a vida.
- E cabe num twitt.
- Garçom, a conta por favor, e a saideira.
- E os pastéis?

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Crônica: Stephen


         - Quantas notas?
         - Repete para mim, por favor.
         - Símbolo da monarquia francesa, uma flor.
         - Sete...
         - Maestro, sete notas para Seu Jorge, o contador.
         O suor escorreu desde a primeira mecha de cabelos castanhos que se soltou do que parecia ser um coque, percorreu levemente o pescoço até seu ombro esquerdo, onde havia um símbolo japonês que significava fé, tatuado em uma técnica pontilhada, envolto em linhas geométricas que formavam um pêndulo, como se a fé tivesse mais peso em suas escolhas, mesmo quando escolhesse não acreditar em si mesma na hora da prova, ou naquelas últimas quatro horas que reviraram fundo na memória dias outros, água, chocolate, relógio se movendo no centro da sala, gabarito transformando anos de estudo em uma batalha naval sem vencedor.
         - E agora Jorge, qual é a música?
         - Posso pedir ajuda para os universitários?
         - Mas haha você está em outro programa Jorge...
         Apaguei alguns parágrafos, não era bem essa a ideia, talvez seja a tatuagem errada...
         - Símbolo da monarquia francesa, uma flor.
         - Sete...
         O suor escorreu desde a primeira mecha de cabelos castanhos que se soltou do que parecia ser um coque, percorreu levemente o pescoço até seu ombro esquerdo, onde havia tatuado, para dar sorte, um símbolo que pertenceu à corte francesa na época do absolutismo, que ganhou musicalidade na voz de...
         - Djavan, Flor de Lis!
         - Maestro, qual é a música?
         - “Valei-me, Deus! É o fim do nosso amor, perdoa por favor, eu sei que o erro aconteceu, mas não sei o que fez tudo mudar de vez, onde foi que eu errei? Eu só sei que amei, que amei, que amei, que amei.”



         - Música que retrata a saga do minotauro, ou o risco de ser parado em uma blitz policial depois de comer um bombom, qual é a música Jorge?
         - Posso pedir ajuda para os universitários?
         - Mas haha você está em outro programa Jorge!
         Mesmo sem se despedir da outra gota de suor que desceu pelo pescoço, ela sorriu da piada, mostrava que ele estava seguro, ainda que pudesse por tudo a perder num piscar de olhos, tirou da bolsa o bombom que recebeu em troca de seu troco, forma de evitar um momento de pequeno desentendimento no pequeno invervalo de almoço.
         Não é bem por aí, a mulher está na platéia ou no palco?
         - Música que retrata a saga do minotauro, ou o risco de ser parado em uma blitz policial depois de comer um bombom, qual é a música Jorge?
         - Posso pedir ajuda para os universitários?
         - Mas haha você está em outro programa Jorge!
         Mesmo sem se despedir da outra gota de suor que desceu pelo pescoço, ela sorriu da piada, mostrava que ele estava seguro, ainda que pudesse por tudo a perder num piscar de olhos...
         Ela não pode estar segurando uma bolsa, está no palco, melhor conferir o primeiro parágrafo de novo.
         - Mas haha você está em outro programa Jorge!
         Mesmo sem se despedir da outra gota de suor que desceu pelo pescoço, ela sorriu da piada, mostrava que ele estava seguro, ainda que pudesse por tudo a perder num piscar de olhos, respirou fundo e esperou a sentença vinda do outro lado do palco.
         - Biafra!
         - Mas você pode pedir uma nota Jorge, estou vendo que está um pouco nervoso, traz um copo de água para ele Roque.
         Ela achava um pouco brega a letra, mas no fundo gostava de algumas rimas, anos 80, nunca tinha dublado “O Sonho de Ícaro” no programa...
         Acho que ficou confuso, senti falta das notas, da ideia da batalha naval...
         - Mas haha você está em outro programa Jorge!
         Mesmo sem se despedir da outra gota de suor que desceu pelo pescoço, ela sorriu da piada, mostrava que ele estava seguro, ainda que pudesse por tudo a perder num piscar de olhos, respirou fundo e esperou a sentença vinda do outro lado do palco.
         - Uma nota Sivio!
         - Muito bem Jorge, senti confiança agora! Uma nota para o contador que veio da pequena Itariri, no Vale da Ribeira, para realizar o sonho de ganhar o primeiro milhão, no palco aqui hoje.
         Caramba, meio exagerado isso, virou show do milhão de novo.
         Mesmo sem se despedir da outra gota de suor que desceu pelo pescoço, ela sorriu da piada, mostrava que ele estava seguro, ainda que pudesse por tudo a perder num piscar de olhos, respirou fundo e esperou a sentença vinda do outro lado do palco.
         - Uma nota Sivio!
         - Muito bem Jorge, senti confiança agora! Uma nota para o contador que veio da pequena Itariri, no Vale da Ribeira, para realizar um sonho. Uma nota maestro!
         - Dó!
         - O sonho de Ícaro!
         Ela achava um pouco brega a letra, mas no fundo gostava de algumas rimas, anos 80, nunca tinha dublado “O Sonho de Ícaro” no programa...
         - Maestro, qual é a música?
         - “Voar, voar. Subir, subir. Ir por onde for. Descer até o céu cair. Ou mudar de cor. Anjos de gás. Asas de ilusão. E um sonho audaz. Feito um balão”.



         - Agora valendo o grande prêmio da noite, música que tem o nome de um ator inglês, nem todo o Zeca canta pagode?
         O silêncio da platéia subiu como um sôpro pela sua espinha, lembrou das tantas vezes em que a eliminação surgia na véspera da vitória do espectador levado ao palco alimentando um sonho para vencer a barreira da timidez e da exposição da intimidade num jogo de azar que tendia inevitavelmente ao azar, arrumou o coque e esperou pelas últimas palavras da crônica de uma morte anunciada.
         - Isso vai parecer batalha naval agora Sílvio, vou mirar no oceano para acertar a proa do porta-aviões!
         Não, não, o cara está quase sendo eliminado, não vai falar algo assim, nem é marinheiro, é contador.
         - Agora valendo o grande prêmio da noite, música que tem o nome de um ator inglês, nem todo o Zeca canta pagode?
         O silêncio da platéia subiu como um sôpro pela sua espinha, lembrou das tantas vezes em que a eliminação surgia na véspera da vitória do espectador levado ao palco alimentando um sonho para vencer a barreira da timidez e da exposição da intimidade num jogo de azar que tendia inevitavelmente ao azar, arrumou o coque e esperou pelas últimas palavras da crônica de uma morte anunciada.
         - Silvio, vou pedir para o maestro me acompanhar nessa, e para a Sabrina que está aflita alí no lado norte do palco me acompanhar nessa, eu gostaria de mandar um abraço ao meu pai Seu Ulisses, que me fazia escutar aquele velho CD do Zeca Baleiro no carro quando viajávamos para Mococa, alí no interior de São Paulo, liberta DJ!
         Seu Jorge, o contador do Vale da Ribeira mudou de programa e canal, desabotoou o primeiro botão da camisa, claustrofobicamente abotoado, e venceu a batalha naval com uma jogada estratégia estilo The Voice:
         - "Por onde andará Stephen Fry, por onde andará... Stephen, ninguém sabe do seu paradeiro, ninguém sabe para onde ele foi, para onde ele vai. Por onde andará Stephen Fry, por onde andará... Stephen, ninguém sabe do seu paradeiro, ninguém sabe para onde ele foi, para onde ele vai. Stephen may be feeling all alone, Stephen never do this again, come back home. Se correr o bicho pega Stephen, se ficar, o bicho come...”.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Cinema 2017 – Dunkirk (Sem Spoilers)


           Lembro de uma entrevista com Brad Pitt, depois do festejado lançamento de Bastardos Inglórios em que ele dizia que após o olhar de Tarantino sobre a II Guerra Mundial, nenhum outro filme sobre a guerra precisaria ser feito, pois tudo já estava dito, filmado, mostrado, era um tema mais do que saturado.



                   Na antológica cena do início de Bastardos Inglórios, que valeu um merecidíssimo Oscar de Ator Coadjuvante para Christoph Waltz, um coronel nazista conversa em três idiomas com um fazendeiro francês, fuma charuto e bebe leite, antes de matar sua família, em um diálogo que se sustenta por 19 minutos e representa o ápice da arte cinematográfica de Tarantino.

                Provavelmente esse diálogo é mais longo do que todas as falas de Dunkirk, o que não valida o argumento de Brad Pitt, pelo contrário, no extremo oposto ao estilo Tarantino, Nolan assina a sua obra-prima, mostra como ser grande respeitando o devido valor do silêncio, com uma fotografia incrível nas cenas de batalhas aéreas sobre o oceano, e o drama sincero dos soldados praticamente abandonados à morte na praia da cidade francesa, localizada a aproximadamente 10 km da Bélgica.



                Como costuma fazer em seus filmes, Nolan utiliza em Dunkirk uma narrativa fragmentada, mas desta vez ele não conta uma história, mas sim coloca o espectador dentro da II Guerra, na praia, no mar, no ar, somos convidados a uma jornada de imersão realista nos escombros do conflito, sem efeitos digitais, sem tela azul, sem óculos 3D, sem o barulho das trilhas de filmes de super-herói, sem a glorificação do herói de guerra, sem litros de sangue, somos solidários à dor, solidários ao silêncio, à falta de esperança, partilhamos o pavor de ver o silêncio rompido por um bombardeio, um tiroteio.

                Embora Dunkirk em alguns momentos remeta aos efeitos psicológicos da guerra vistos em Além da Linha Vermelha, permeados pela ação de Resgate do Soldado Ryan, talvez o filme dialogue com o lirismo de um outro clássico de guerra, Apocalypse Now, da cena de abertura ao som de The End, The Doors, à Cavalgada das Valquírias de Wagner, para ver o seu silêncio deslizar suavemente como um música, a banalidade do mal talvez não caiba tão bem na banalização da conversa jogada fora, é como se a escuridão pedisse o som do silêncio para se mostrar à luz dos olhos com a saudação que merece o olhar, Nolan criou uma obra que respeita a dor, o silêncio e a desilusão de uma guerra, convidou o espectador a experimentar toda essa intensidade, entre os destroços do passado e as incertezas do futuro. Um filme grandioso, grande primeiro favorito à estatueta de melhor filme, diretor, trilha sonora (o silêncio é também uma longa e crescente música de Hans Zimmer).



“Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains within the sound of silence(...)”

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Crônica: Um, Dois, Três... Quatorze! Precisamos falar sobre o amor



Não conheci a Ana no Jazz embora acredite que ela deve ter feito alguma aula de Jazz nos anos 90, inspirada pela dança de Flashdance, ou no seu gosto meio peculiar por cursos diferentes já que ela é a única pessoa que conheço que fez aulas de astronomia.

Ela começou falando sobre bolachas recheadas e os dilemas de morar sozinha e conversar com a TV ligada, alguns meses depois nos encontramos fazendo um vinagrete juntos e a sua técnica prática e apressada contrastava com minha vagarosa técnica de cortar a cebola em pequenos pedaços simétricos.

Dizem que somos parecidos, acho até que por sermos tão diferentes acabamos ficando parecidos, aprendemos a enxergar o outro lado, a outra opinião, o outro olhar, para então olharmos juntos, de uma forma diferente, aprender, conviver, viver junto, amar, compartilhar, os verbos que transformam nossas individualidades numa grande parceria de vida.


Tenho certeza que ela é a única pessoa que sabe me fazer as três perguntas clássicas para as quais não tenho resposta, que faz tantas coisas ao mesmo tempo enquanto fala comigo sobre uma coisa banal ou sobre a degradação das condições de trabalho pós reforma trabalhista, futebol, política, religião? Somos realmente diferentes, cada um a seu modo, mas dançamos sem música no tapete da sala e transformamos nossas diferenças no compasso dos nossos passos, um ano se passou, dois anos se passaram, dez anos se passaram e o sete dobrou, contamos o tempo pelas primaveras e pelas conversões do relógio em horário de verão.

Eu sempre disse a ela que o tempo é um aliado, que a constelação de aquário fica perto de Vênus e que a resposta certa para todas as perguntas é depende, ela entende todas as minhas esquisitices, se diverte com elas, resume minhas frases cheias de palavras e mostra o caminho mais curto para as minhas divagações, coloca pontos finais nas minhas interrogações, torce para o outro time e vota no outro candidato, pede para eu colocar o flash na foto, para eu não exagerar no vinho do molho, na cerveja do peixe, no conhaque do estrogonofe.


Com o passar dos anos, amamos, vivemos, nos misturamos entre os gostos tantos, olhares outros e uma imensidão de palavras, nos apaixonamos pelos passos que demos juntos, pela nossa dança, nossas piadas, nossa mistura que transforma um estacionamento de shopping em um experimento antropológico sobre a corrente do bem, ou nossa luta por justiça em blecautes combatidos com pizza e vinho, o tempo fez com que passássemos a gostar das mesmas músicas, das mesmas séries, mas ainda não gostamos dos mesmos livros, mesmos filmes, cuidamos juntos das nossas dores e da nossa fragilidade, olhamos pela janela e procuramos o mesmo pôr-do-sol, a mesma lua, ouvimos a mesma melodia e aprendemos que amar é o verbo que orienta nossas tantas escolhas, aquece nossos sonhos e nos mostra nas noites sem Lua, que a água da chuva não apaga o brilho das estrelas. 

Ouça a trilha sonora do texto aqui:
https://youtu.be/CqXMfveU6-E

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Crônica: Asterix, Spritz e a Batalha do Dragão na noite sem Lua



                Enquanto travava uma batalha medieval com um dragão alaranjado que voava, alguns pensamentos povoavam minha mente, eu realmente tentei, alimentei o dragão enquanto lançava bolas com efeito na estratosfera, mas como nem toda luta termina com vencedores e vencidos, ele foi embora e mesmo sem vencer, me deixou vencido.

                Era uma noite dessas de primavera paulistana em que a Lua se esconde atrás de alguns borrões de fumaça das estrelas que passam bem em frente aos nossos olhos, estrelas nem procuramos mais para não ter que usar o lado azul da borracha na folha de papel, diziam que apagava a tinta da caneta, talvez depois de um triste lamento do papel.

                Tocava um indie/folk meio psicodélico no meu celular, The Head and the Heart “You can get lost in the music for hours, honey, you can get lost in a room. We can play music, for hours and hours, but the sun will still be coming up soon.”

                Apagamos as luzes, trancamos a porta, e na hora de ir embora olhamos no mapa, lá estava ele, voando duas quadras a oeste, entre a lanchonete fechada e a faculdade sem aulas, havia um estacionamento...
               
                - Achou?
                - Não... achou?
                - Só pode estar aqui?
                - Onde? Aqui?
                - Caraca, achei velho!!!

                Uns vinte caras que provavelmente nem se conheciam se inscreveram na expedição real, caçar o dragão que cospe fogo no vilarejo e aparece nas noites sem lua da Primavera, o prêmio? Cem moedas de ouro? Respeito!

                Lembrei da noite no Pub Asterix, bar mais medieval do Centro-Leste da Itália, melhor chope de trigo, weizen, azeitona recheada, depois publico o cardápio para vocês. Noite correndo solta, umas trinta equipes disputando um Quizz que parecia batalha naval, a resposta certa é aquela em que você acerta navio sem saber, dá-lhe chope de trigo, petisco, tensão no ar, uma luta inglória pela vitória ou por um pouco de dignidade, a equipe Obelix se afundando, atirando bolas ao mar, já desiludido pergunto para meu amigo australiano Kostas qual o prêmio, porque lutamos? "Respect!” ele me disse, bateu no meu peito e erramos mais uma, outro chope de trigo. Spritz? Esses romanos são uns loucos! Romanos?

                Os cavaleiros errantes dispensaram a armadura e partiram para a batalha com a coragem de enfrentar os furtos de celular, erraram mais bolas do que o respeito permitiria e o Dragonite se foi, voou para aterrorizar o vilarejo na noite sem lua, nem sempre vencemos feras com bolas coloridas, a colina medieval voltou a ser um estacionamento e a noite voltou a ser noite, demos o nosso melhor, se trocássemos os carros por moinhos de vento seríamos poetas idealistas loucos, somos um pouco de cada uma dessas coisas perdemos uma batalha e guardamos o celular.

                Naquele momento de despedida, guardamos todos as armas e nos olhamos com respeito, partimos cada um para seu destino, para sua própria noite sem lua, cada qual com sua trilha sonora.

                “And the shame, was on the other side
                Oh, we can beat them, forever and ever
                Then we could be heroes, just for one day
                We can be heroes
                We can be heroes
                We can be heroes
                Just for one day!”

                Dois dias depois, numa tarde sem glória numa rua sem contramão, peguei o Dragonite, não foi tão difícil quanto à noite sem Lua ou o Quizz sem resposta, guardei meu respeito no bolso, num misto de Mestre dos Magos e Mestre Pokémon, e parti pronto para uma próxima batalha.

                "Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resistia ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legendários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum e Petibonum..." Spritz? 


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Crônica: Milk-shake de palavras, há tantas formas de se ver o mesmo quadro





                “Hei mãe, eu tenho uma guitarra elétrica, durante muito tempo isso foi tudo que eu queria ter, mas hei mãe, por mais que a gente cresça, há sempre alguma coisa que a gente não consegue entender...”
                Eu cantava para a Vicky parar de chorar quando era bebê, depois de fazer uma sessão de rock mais clássica de manhã, eu pegava um pouco mais leve à noite com Engenheiros, e mostrava para ela a Lua pela janela do quarto, aprendi que a melhor técnica para fazer um bebê parar de chorar é sair um pouco do convencional, tentar alguma coisa diferente mudar o foco daquela tristeza interior momentânea que a fez chorar.
                Minha vida ficou mais triste depois que descobri, ontem, que os Engenheiros do Hawaii encerraram a carreira há alguns anos, acabei descobrindo de novo que as nuvens não eram de algodão, e que o milkshake de Ovomaltine foi apropriado pelo McDonald’s, nessa terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes, a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes, se você acertar a cor da lata de coca-cola cowboy ganha um milk-shake, agora ‘crocante’ do Bob’s, um dia chamaram a Kolynos de Sorriso, ninguém sorriu.
                Trabalhei um tempo no prédio do Bob’s da Avenida Paulista, estudei lá, conheci a Ana comendo uma bolacha recheada de chocolate, aprendi tributário, fiz uma porção de amigos que não aprenderam tributário, tenho uma ligação emocional com o velho Bob’s, mesmo sendo excepcionalmente o cara que pede outro milk-shake, Ovomaltine é uma indução da cultura de consumo, não tenho um Iphone, vou na concorrente Samsung, a câmera capta melhor a luz do Sol, mas mesmo sendo um consumidor um pouco alternativo, fui lá um dia pedir meu milk-shake, mas de baunilha.
                - Ovomaltine?
                - Não, baunilha!
                - Baunilha? Deixa eu ver se ainda tem?
                - Se não tiver pode ser morango ou chocolate, só não quero o Ovomaltine...
                - Que horas?
                (Que horas? Como assim? Lembrei de um domingo, fazendo uma prova de um dia inteiro no Rio de Janeiro, na UERJ, na hora do almoço o fiscal passou umas comandas com cardápio e disse que podíamos escolher o que quiséssemos, era só anotar o horário e dar o dinheiro, fui esperto, coloquei lá o horário clássico 13:30h, comi meu misto quente umas 16h.)



                Pensei, legal o Bob’s, vende tantos milk-shakes que agora tem algum tipo de serviço com hora marcada, venha buscar seu milk-shake mais tarde, traga sua senha e retire o produto, mas sério isso?
                - Ahhhh... O que?
                - Que horas?
                “Ela para e fica ali, parada, olha-se para nada...”
Qual a melhor hora para um milk-shake, talvez no meio da tarde umas 16:30h, antes do último Sprint laboral do dia, ou será que era melhor na saída do trabalho, andar pela avenida ouvindo uma música, com milk-shake voltando para casa.
                - Como assim que horas? Pode ser agora?
                “Eu paro e fico ali parado, olho-me para longe...”
A mulher bateu no meu pulso:
                - Que horas agora?
                - Ah tá, duas horas.
                - Seu milk-shake.
                - Obrigado.
            Mas agora o McDonald’s revolucionou minha teoria de consumidor defensor dos mais fracos, pois o fraco era o Bob’s, mais do que o milk-shake de baunilha, olhando para trás agora percebo que perdi anos da minha vida sem tomar o milk-shake de Ovomaltine, por causa de uma falha de interpretação, e agora para manter a coerência da minha filosofia não vou mais poder comprar, mas se olhar por outro ângulo, o milk-shake sempre foi o calcanhar de Aquiles do McDonald’s, então, de repente até rola um Ovomaltine.
          Hoje a Vicky tem algumas bonecas que ela trata como filhas, outro dia ela levou a favorita dela, a Clarinha para a escola, quando eu fui buscá-las no caminho de volta ela me mostrou a Lua, e disse que ela e a Clarinha tinham visto a Lua à tarde no pátio da escola, deitaram no chão para ver melhor, ficaram lá as duas, deitadas, vendo o brilho da Lua, enquanto as pessoas correm, trabalham, compram milk-shakes de Ovomaltine no McDonald’s ou descobrem os prazeres do milk-shake de baunilha do Bob’s.
Bonito isso, minha garotinha! Chorei! E fui procurar, com o olhar, a Lua, a Vicky e a Clarinha me mostraram, a chuva também chorou.
           “Que a chuva caia como uma luva, um dilúvio, um delírio, que a chuva traga, alívio imediato. Que a noite caia de repente caia, tão demente quanto um raio, que a noite traga alívio imediato.”


               



segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Crônica: 80’s



Algumas experiências por vezes são como uma pequena viagem no tempo, em um intervalo de alguns poucos dias assisti ao filme “As vantagens de ser invisível”, à série “Stranger Things” e revi “Conta Comigo”, lembrei o que alguns poucos fios de cabelo branco já indicavam, cresci nos anos 80, influenciado por uma cultura Pop que hoje virou Geek e Cult, vai entender as terminologias que empurraram meu velho rock de influência pop para indie rock.

É incrível ver os garotos de Stranger Things explorando o mundo com a imaginação daquela época, em que a informação vinha de alguma outra pessoa ou de algum livro, revista, enciclopédia, aprender era algo que dependia de uma relação de confiança, não precisava desconfiar do significado de algo e digitar no google, desconfiar de alguém.

A amizade pura de uma infância que se baseia numa visão criativa de mundo, e cresce com a entrada na adolescência e na fase da experimentação daquela visão já era a base de filmes icônicos dos anos 80 como “Os Goonies”, “ET – o Extraterrestre” ou “Conta Comigo”, e não é à toa que a grande cena de “As Vantagens de ser invisível” toca tanto quanto ouvir “We can be heroes, just for one day” na voz de David Bowie.



Se todos queríamos ser heróis, olhar para o passado trinta anos depois talvez seja uma forma de perceber que deixamos aqueles valores todos numa lembrança, o mundo mudou tanto quanto nós, talvez mais, aprendemos com esse novo mundo a deixar de acreditar, a desconfiar, a cidade criou muros, os muros, sistemas sofisticados de segurança, os encontros viraram desencontros, alguns heróis morreram de overdose, aquelas cores todas se esconderam nos anos 90, o mundo foi se abrindo perante nossos olhos, e o que encontramos com isso não foi exatamente um tesouro pirata, um extraterrestre, uma fita cassete gravada sem as vinhetas das rádios, o mundo mudou não apenas a realidade, mudou a imaginação de gerações de crianças que cresceram em realidades outras, não paralelas ou invertidas como a de “Stranger Things”.

Como o retrato de uma época, não sei exatamente qual o efeito de séries como “Stranger Things” ou de filmes como “As vantagens de ser invisível”, “Os Goonies” ou “Conta Comigo” em quem não cresceu sobre essa influência, uma geração influencia outra, mas seu significados, sua herança, muitas vezes demoram para aparecer e se os anos 80 eram uma espécie de patinho feio quando comparados aos 60 ou 70, hoje aqueles anos já possuem outro significado no imaginário cultural, atingiram um grau de respeito que inspira referências diversas da cultura atual e a produção de um verdadeiro fenômeno como “Stranger Things”.

A realidade transformou a inocência, num mundo que mistura Matrix com “V de Vingança”, “O show de Truman” ou “A Onda”, não existe mais espaço para River Phoenix e Will Wheaton saírem para uma caminhada na floresta pelos trilhos do velho trem à procura do garoto desaparecido. Essa mudança é emblemática em outro filme “Os Guardiões da Galáxia”, no qual o menino Starlord recebe no começo dos anos 80 uma fita cassete de sua mãe no leito de morte, os incríveis sucessos vol. 01, e aprende com o mundo a ser um caçador de recompensas enquanto dança ao som de Jacksons Five, música de primeiríssima qualidade na voz do menino Michael Jackson, antes de ser grande.


River Phoenix se foi, mas seu talento inspirou o irmão Joaquim a ser ator, Will Wheaton ganhou o perdão de Sheldon Cooper depois de algumas temporadas, em alguns momentos Walter Mitty pode deixar de tirar a foto, e parar de correr da vida, com a vida, para ouvir David Bowie e sair em busca de seus velhos sonhos, todos ainda podemos ser heróis, ao menos por um dia, Major Tom to Ground Control... não perca “Stranger Things”, vá lá buscar no Netflix “As Vantagens de ser invisível”, coloque David Bowie na playlist, o mundo de hoje precisa, pelo menos um pouco, dos 80’s, quem sabe não conseguimos com algum esforço gravar um incrível fita cassete e musicar a trilha sonora de nossos próprios passos, com algum estilo.